quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Teologia Bíblica II - Terceira Aula



O Cânon do Novo Testamento

            O caminho percorrido desde a produção do texto dos 27 livros do NT até seu reconhecimento pela Igreja levou aproximadamente 3 séculos.

            Num sentido básico o Cânon não foi “criado” nem por indivíduos, tão pouco por algum conselho; em vez disso, indivíduos e conselhos perceberam e reconheceram a qualidade autoprobatória desses textos, que impuseram-se a si mesmos como canônicos sobre a Igreja. A Igreja não criou o Cânon, mas “reconheceu” como sagrado (regra) um universo consideravelmente  significativo de escritos dos primórdios do NT.

            A base de julgamento para tal reconhecimento consistia em verificar se possuíam as marcas da autoridade apostólica – escritos, ou pelos próprios apóstolos ou por auxiliares próximos, se sua origem era comprovadamente do 1º século e se a mensagem se harmonizava coerentemente com o Evangelho de Jesus Cristo.  Em suma, a autoria, a data e o conteúdo eram peças importantes.

            Até 1989, mais de 5 mil manuscritos contendo pelo menos um pedaço do Novo Testamento tinham sido catalogados.
ü Mais de 5000 manuscritos do texto do NT grego
o   88 papiros
o   274 unciais (manuscritos maiúsculos) – geralmente em pergaminhos
o   3000+ minúsculos – tipo de letra cursiva desenvolvida em Bizâncio
o   2140+ lecionários em grego (para leitura diária, devocionais, culto)

ü Mais de 10.000 manuscritos em outros dialetos
o   8000 manuscritos em latim
o   2000 manuscritos em outras versões

ü Somente 1/60 das palavras do texto são disputadas; 1 palavra em cada 1000 envolve alguma dúvida importante sobre o significado no texto original.

ü Há tantas citações do NT grego na literatura patrística, que poderíamos reproduzir quase todo o NT baseado somente nelas! (Wallace, II-10)

ü O NT é o documento do mundo antigo melhor preservado de todos.  Há mais cópias do NT grego do que qualquer literatura antiga e parece que mais cópias do que a soma de TODOS os manuscritos de TODA a literatura clássica! (Wallace, II-5). 

ü O manuscrito mais velho do NT: P52, datado entre 80-125 a.d..  É muito mais perto da data da composição original do que o manuscrito mais velho de qualquer outra literatura antiga. 

Histórico do Cânon

Período Apostólico:  autoridade oral (At 2.42) e escrita (2Pe 3.16) dos apóstolos era normativa para a Igreja (cf. Gl 1.7-9; 1Ts 2.13). Com base em 2Pe 3.16, talvez pudéssemos sugerir os primórdios de uma “coleção” de escritos paulinos.

Período Pós-apostólico:  outros evangelhos além dos 4 posteriormente canonizados, com certa autoridade (especulações gnósticas, lendas sobre a vida infante de Jesus).  Márcion (cerca de 150 a.D.) falava de uma “nova mensagem” dada secretamente por Jesus aos 12, que não haviam evitado sua corrupção, sendo preservada apenas por Paulo.  Em sua lista havia Lucas (com algumas omissões) e mais 10 cartas de Paulo sem as pastorais.

Irineu:  cerca de 178-200 a.D., fixou em 4 o número dos evangelhos.  Foi o primeiro a sugerir um teste básico para a canonicidade, que consistia no fato de que dentre os diversos livros cristãos os de maior valor seriam os que têm alguma ligação com os apóstolos.

Cânon Muratoriano:  cerca de 180 a.D. descoberto pelo bibliotecário Muratori na Biblioteca Ambrosiana em Milão.  Reflete a tradição da Igreja sobre o NT.  A terceira parte do Cânon ainda incerta.  O apócrifo “Pastor de Hermas” era de uso pessoal, não público.

a.D. 200:  Cânon já bem semelhante ao que temos acesso hoje.  As discussões giravam em torno de Apocalipse no Oriente e Hebreus no Ocidente.  A Terceira parte do Cânon já mais definida.  Houve a rejeição de Atos de Paulo, Pastor de Hermas, Apocalipse de Pedro, carta de Barnabé, “Didachê” e do Evangelho segundo Hebreus.

a.D. 300:  fixação do cânon com listas dos livros com autoridade para a Igreja:  Atanásio (Igreja Oriental – 367 a.D.) e Concílio de Cartago (Igreja Ocidental – 397 a.D.)

O Processo do Cânon
180 a.D.

NT da Igreja Romana (Muratori)
250 a.D.

NT de Orígenes
300 a.D.

NT de Eusébio
400 a.D.

Concílio de Cartago

4 Evangelhos

Atos

Paulinas
Rm
1 e 2 Co
Gl
Ef
Fp
Cl
1 e 2 Ts
1 e 2 Tm
Tt
Fm

4 Evangelhos

Atos

Paulinas
Rm
1 e 2 Co
Gl
Ef
Fp
Cl
1 e 2 Ts
1 e 2 Tm
Tt
Fm

4 Evangelhos

Atos

Paulinas
Rm
1 e 2 Co
Gl
Ef
Fp
Cl
1 e 2 Ts
1 e 2 Tm
Tt
Fm

4 Evangelhos

Atos

Paulinas
Rm
1 e 2 Co
Gl
Ef
Fp
Cl
1 e 2 Ts
1 e 2 Tm
Tt
Fm
Tg
1 e 2 Jo
Jd
Ap de João
Ap de Pedro
Sabedoria de Salomão
1 Pe
1 Jo

Ap de João
1 Pe
1 Jo

Ap de João
(autoria disputada)
Hb
Tg
1 e 2 Pe
1,2 e 3 Jo
Jd
Ap de João
 Pastor de Hermas
(uso pessoal, não público)
Disputadas:
Hb, Tg, 2Pe, 2 e 3Jo, Jd, Pastor de Hermas, Epístola de Barnabé, Didachê, Evang. Hb


(J.Drane, “Introducing the NT”, p. 408s.)
3. Introdução aos Evangelhos Sinóticos

            Quando fazemos uma análise dos Evangelhos, percebemos que o atribuído a João se sobressai como uma literatura mais autônoma, ou seja, que não demonstra uma dependência dos outros 3 Evangelhos.  Já os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas esboçam uma ligação entre si.  Por isso, denomina-se esses três de “Evangelhos Sinóticos”, que significa uma visão conjunta, ou um mesmo olhar para a vida e o ministério de Jesus (gr. “sin + óptico”= com a mesma ótica).

            Quando estudamos os Evangelhos não estamos apenas vendo o que Jesus disse e fez, mas também como cada autor entendeu o que Ele disse e fez.  Por isso, é importante ter em mente que nenhum Evangelho é mais teológico que outro, mas que cada um deles é teologia.  Cada autor tem como objeto o que Jesus disse e fez e se esforça para transmitir isso. É Jesus quem importa nestes escritos e não o evangelista.

I.                   Harmonia dos Evangelhos:

a.       Diatessaron de Taciano (Síria): A primeira tentativa preservada está no 2º séc. A.D.  com o chamado “Diatessaron”, que em Grego significa através dos quatro.  Taciano procurou combinar os 4 Evangelhos numa só narrativa consecutiva.  Basicamente ele traçou a seguinte linha:
ü Mateus para o ministério de Jesus
ü João para a paixão de Jesus
ü Inseriu Marcos e Lucas onde era apropriado (por exemplo: Sermão do Monte de Mt 5-7 e o Sermão da Planície de Lc 6.17-49).

b.      Agostinho de Hipona: já na segunda metade do 4º e início do 5º séc. A.D., enfatizou que os Evangelhos freqüentemente não indicam com precisão o local e a seqüência dos eventos que relatam. Segundo ele, só se deve presumir local e continuidade cronológica quando o texto indicar explicitamente.  Outro destaque de Agostinho é que passagens paralelas podem variar em vocabulário, mas transmitir a mesma idéia.

c.       João Calvino (1509-64): publicou em 1555 uma “Harmonia dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas” em Latim.  Ele procurou fazer um arranjo com as passagens, tentando colocá-las em ordem.

II.                O Problema Sinótico:

                        A questão principal dos sinóticos é descobrir qual foi o primeiro escrito e, conseqüentemente, quais são os outros que dependeram desse primeiro para produzirem seu Evangelho.  Mas até que ponto podemos saber se um evangelista utilizou material de outro evangelista tem sido objeto de debate há muitos séculos.Textos como Lucas 1.1-4 e Jo 21.25 sugerem a hipótese de que um autor conhecia o trabalho de outro.

a.      A Teoria da Prioridade de Marcos:

      Essa é a teoria que goza de maior aceitação entre os eruditos.  Também chamada de Teoria dos Dois Documentos, defende Marcos como o 1º escrito.  Mateus e Lucas teriam copiado de Marcos em vários pontos, porém não deixaram de usar material de uma outra fonte que Marcos desconhecia.  Essa seria a explicação para as diversas palavras de Jesus comuns em Mateus e Lucas, mas que não aparecem em Marcos.  Com isso, surgiu a hipótese da chamada “fonte Q”, que veremos a seguir.

Marcos







 




Mateus                  Q                  Lucas

b.      A Teoria Tradicional de Mateus:
      Marcos é visto não como o primeiro, mas como resumo de Mateus e Lucas teria usado os 2 para produzir seu Evangelho.  Tem gozado de muita popularidade na Igreja desde Agostinho essa teoria.

Mateus




Marcos                          Lucas

            Os problemas quanto ao relacionamento literário entre os Evangelhos não é fácil de ser resolvido e nenhuma das teorias fornece resposta a tudo. Talvez melhor seria pensar que, pelo fato de cada evangelista estar já envolvido com uma Igreja, utilizasse uma seletividade, que jamais deve ser confundida com criatividade do autor.  Há dois pontos importantes a se pensar:

1.         Independência:  cada evangelista usou o material mais adequado ao seu propósito (seletividade) em escrever o Evangelho.

2.         Interdependência: todos os evangelistas conheciam as tradições orais acerca de Jesus.  Essas tradições que circulavam nas Igrejas eram, presumivelmente, fiéis aos fatos.

Assim, talvez não seja necessário pensar que os evangelistas usavam muito material escrito.  Talvez isso seja razoável para explicar as diferenças nas palavras de Jesus em um ou outro Evangelho.  Ainda assim, Marcos parece ser o mais primitivo de todos por alguns fatos:
¨      A simplicidade da narrativa;

¨      Pela sua falta de preocupação com a perseguição;

¨      Por não ter 250 versículos que Mateus e Lucas possuem em comum.

4. As fontes do Evangelho: O proto-evangelho e a fonte Q

O chamado “problema sinótico”, que já introduzimos acima, tem relação com a origem desses Evangelhos. Há muito material comum aos três, mas também há considerável quantidade de material peculiar apenas a dois dos três e até material peculiar a cada um deles.  Ao observar os sinóticos, notamos o seguinte:

w  Algumas passagens concordam quase ad litteram – Mt 21.23-27 = Mc 11.27-33 = Lc 20.1-8; Mt 24.4-8 = Mc 13.5-8 = Lc 21.8-11.
w  Mateus e Lucas têm muita coisa que está ausente em Marcos.
w  Às vezes, a matéria é exclusiva, encontrando-se em apenas um dos Evangelhos – Mt 1.1-2.23; Lc 1.1-2.52.
w  Outras vezes, há matérias comuns há dois deles, chegando a quase uma concordância literal – Mt 6.25-34 = Lc 12.22-31.
w  Marcos, apesar de ser o mais breve, contém cerca de 30 versículos que lhe são próprios, não encontrados em Mateus e Lucas – exemplo: Mc 4.26-29.

Assim, diz-se que os sinóticos contêm diferenças e semelhanças.  Essa notável combinação de concordâncias e divergências chama-se “concórdia discors”, ou seja, concórdia discordante.

I.                   Tentativas de Solução do Problema Sinótico:

Desde os começos do século XIX têm surgido tentativas para a solução do problema sinótico.  Dentre elas, quatro merecem destaque:
A hipótese do proto-evangelho:
Essa hipótese foi proposta por G.E. Lessing (1778) e J.C. Eichhorn, que acreditavam na existência de um evangelho original, uma fonte escrita comum da qual os três evangelistas sinóticos se serviram para a produção de seus Evangelhos. Segundo o pensamento de Lessing, essa fonte seria um evangelho em aramaico escrito por Mateus, conhecido como Evangelho dos Nazarenos. O nosso Evangelho de Mateus, seria um resumo desse primeiro que teria se perdido. Marcos e Lucas teriam derivado o seu material desse evangelho aramaico, feitos de acordo com seus pontos de vista e com os propósitos que tinham em mente. A base para as suposições de Lessing era uma declaração de Papias de que cada um interpretava a Logia de Mateus como podia.

A hipótese diegésica ou dos fragmentos (diegeses - "relatos"):
Segundo esta hipótese, produzida por Schleiermacher (1768-1834 d.C.) em 1817, os sinóticos foram formados a partir de inúmeros fragmentos que foram registrados pelos apóstolos e seus ouvintes. Desse modo, a matéria dos Evangelhos sinóticos viria de um grande número de breves anotações (diegeses), que apareceram bem cedo.  Esses fragmentos, contendo temas como milagres, parábolas, narrativas e discursos, logo foram traduzidos para o grego e serviram de base para os evangelistas sinóticos, que os coletaram e com eles formaram os seus evangelhos. Lc. 1:1-2 tem sido invocado como uma evidência disto.  Todavia,  esta teoria não explica a concordância na disposição da matéria.
A hipótese da tradição oral:
Foi defendida primeiro em 1797 por J.G. Herder e mais tarde por J.K.L. Geisler, em 1818. Baseia-se na pressuposição de um proto-evangelho, não escrito, mas pregado oralmente,  que teria tomado forma fixa bem cedo, por volta de 35-40 a.D. e poderia ser essa forma igual a da pregação missionária dos apóstolos, conforme transmitida pelo Livros de Atos. Foi aceita por muitos estudiosos protestantes como Westcott, Alford, Godet, etc.  Esta teoria está certa quanto ao fato de a matéria dos Evangelhos foi transmitida oralmente por um longo período, mas não explica satisfatoriamente as concordâncias, às vezes literais, e a sucessão das perícopes em ordem idêntica.
A hipótese das duas fontes:
A teoria admite duas fontes para a origem literária dos Evangelhos sinóticos: uma é o Evangelho de Marcos, que serviu de modelo para os outros dois (Mateus e Lucas); e a outra, que continham as palavras do Senhor, chamada fonte Q. A fonte Q é um pressuposto que originou-se após os estudiosos terem percebido que 50% dos textos de Mateus e Lucas concordam quase literalmente e que não estão em Marcos. Com isso concluiu que Mateus e Lucas se basearam num texto grego comum, a que chamou de fonte dos discursos, pois "consiste" em grande parte dos discursos (ou ditos) de Jesus. Esse suposto texto é hoje chamado de fonte Q por causa da palavra alemã para fonte - Quelle.

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