O Cânon do Novo
Testamento
O caminho
percorrido desde a produção do texto dos 27 livros do NT até seu reconhecimento
pela Igreja levou aproximadamente 3 séculos.
Num
sentido básico o Cânon não foi “criado” nem por indivíduos, tão pouco por algum
conselho; em vez disso, indivíduos e conselhos perceberam e reconheceram a
qualidade autoprobatória desses textos, que impuseram-se a si mesmos como
canônicos sobre a Igreja. A Igreja não criou o Cânon, mas “reconheceu” como
sagrado (regra) um universo consideravelmente
significativo de escritos dos primórdios do NT.
A base de
julgamento para tal reconhecimento consistia em verificar se possuíam as marcas
da autoridade apostólica – escritos, ou pelos próprios apóstolos ou por
auxiliares próximos, se sua origem era comprovadamente do 1º
século e se a mensagem se harmonizava coerentemente com o
Evangelho de Jesus Cristo. Em
suma, a autoria, a data e o conteúdo eram peças importantes.
Até 1989,
mais de 5 mil manuscritos contendo pelo menos um pedaço do Novo Testamento
tinham sido catalogados.
ü
Mais de 5000 manuscritos do texto do NT grego
o
88 papiros
o
274 unciais (manuscritos maiúsculos) – geralmente
em pergaminhos
o
3000+ minúsculos – tipo de letra cursiva
desenvolvida em Bizâncio
o
2140+ lecionários em grego (para leitura diária,
devocionais, culto)
ü
Mais de 10.000 manuscritos em outros dialetos
o
8000 manuscritos em latim
o
2000 manuscritos em outras versões
ü
Somente 1/60 das palavras do texto são
disputadas; 1 palavra em cada 1000 envolve alguma dúvida importante sobre o
significado no texto original.
ü
Há tantas citações do NT grego na literatura
patrística, que poderíamos reproduzir quase todo o NT baseado somente nelas!
(Wallace, II-10)
ü
O NT é o documento do mundo antigo melhor
preservado de todos. Há mais cópias do
NT grego do que qualquer literatura antiga e parece que mais cópias do que a
soma de TODOS os manuscritos de TODA a literatura clássica! (Wallace,
II-5).
ü
O manuscrito mais velho do NT: P52,
datado entre 80-125 a.d.. É muito mais
perto da data da composição original do que o manuscrito mais velho de qualquer
outra literatura antiga.
Histórico do Cânon
Período Apostólico: autoridade oral (At
2.42) e escrita (2Pe 3.16) dos apóstolos era normativa para a Igreja (cf. Gl
1.7-9; 1Ts 2.13). Com base em 2Pe 3.16, talvez pudéssemos sugerir os primórdios
de uma “coleção” de escritos paulinos.
Período Pós-apostólico: outros evangelhos
além dos 4 posteriormente canonizados, com certa autoridade (especulações
gnósticas, lendas sobre a vida infante de Jesus). Márcion (cerca de 150 a.D.) falava de uma
“nova mensagem” dada secretamente por Jesus aos 12, que não haviam evitado sua
corrupção, sendo preservada apenas por Paulo.
Em sua lista havia Lucas (com algumas omissões) e mais 10 cartas de
Paulo sem as pastorais.
Irineu: cerca de 178-200 a.D., fixou em 4 o número
dos evangelhos. Foi o primeiro a sugerir
um teste básico para a canonicidade, que consistia no fato de que dentre os
diversos livros cristãos os de maior valor seriam os que têm alguma ligação com
os apóstolos.
Cânon Muratoriano: cerca de 180 a.D.
descoberto pelo bibliotecário Muratori na Biblioteca Ambrosiana em Milão. Reflete a tradição da Igreja sobre o NT. A terceira parte do Cânon ainda incerta. O apócrifo “Pastor de Hermas” era de uso pessoal,
não público.
a.D. 200: Cânon já bem semelhante ao que temos acesso
hoje. As discussões giravam em torno de
Apocalipse no Oriente e Hebreus no Ocidente.
A Terceira parte do Cânon já mais definida. Houve a rejeição de Atos de Paulo, Pastor de
Hermas, Apocalipse de Pedro, carta de Barnabé, “Didachê” e do Evangelho segundo
Hebreus.
a.D. 300: fixação do cânon com listas dos livros com
autoridade para a Igreja: Atanásio
(Igreja Oriental – 367 a.D.) e Concílio de Cartago (Igreja Ocidental – 397 a.D.)
O Processo do Cânon
180 a.D.
NT da Igreja Romana (Muratori)
|
250 a.D.
NT de
Orígenes
|
300 a.D.
NT de Eusébio
|
400 a.D.
Concílio de Cartago
|
4
Evangelhos
Atos
Paulinas
Rm
1 e 2 Co
Gl
Ef
Fp
Cl
1 e 2 Ts
1 e 2 Tm
Tt
Fm
|
4
Evangelhos
Atos
Paulinas
Rm
1 e 2 Co
Gl
Ef
Fp
Cl
1 e 2 Ts
1 e 2 Tm
Tt
Fm
|
4
Evangelhos
Atos
Paulinas
Rm
1 e 2 Co
Gl
Ef
Fp
Cl
1 e 2 Ts
1 e 2 Tm
Tt
Fm
|
4
Evangelhos
Atos
Paulinas
Rm
1 e 2 Co
Gl
Ef
Fp
Cl
1 e 2 Ts
1 e 2 Tm
Tt
Fm
|
Tg
1 e 2 Jo
Jd
Ap de
João
Ap de
Pedro
Sabedoria
de Salomão
|
1 Pe
1 Jo
Ap de
João
|
1 Pe
1 Jo
Ap de
João
(autoria
disputada)
|
Hb
Tg
1 e 2 Pe
1,2 e 3
Jo
Jd
Ap de
João
|
Pastor de Hermas
(uso
pessoal, não público)
|
Disputadas:
Hb, Tg,
2Pe, 2 e 3Jo, Jd, Pastor de Hermas, Epístola de Barnabé, Didachê, Evang. Hb
|
|
|
(J.Drane, “Introducing the NT”, p. 408s.)
3. Introdução aos
Evangelhos Sinóticos
Quando
fazemos uma análise dos Evangelhos, percebemos que o atribuído a João se
sobressai como uma literatura mais autônoma, ou seja, que não demonstra uma
dependência dos outros 3 Evangelhos. Já
os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas esboçam uma ligação entre si. Por isso, denomina-se esses três de
“Evangelhos Sinóticos”, que significa uma visão conjunta, ou um mesmo olhar para a vida e o
ministério de Jesus (gr. “sin + óptico”= com a mesma ótica).
Quando
estudamos os Evangelhos não estamos apenas vendo o que Jesus disse e fez, mas
também como cada autor entendeu o que Ele disse e fez. Por isso, é importante ter em mente que
nenhum Evangelho é mais teológico que outro, mas que cada um deles é
teologia. Cada autor tem como objeto o
que Jesus disse e fez e se esforça para transmitir isso. É Jesus quem importa
nestes escritos e não o evangelista.
I.
Harmonia dos Evangelhos:
a.
Diatessaron
de Taciano (Síria):
A primeira tentativa preservada está no 2º séc. A.D. com o chamado “Diatessaron”, que em Grego
significa através dos quatro. Taciano
procurou combinar os 4 Evangelhos numa só narrativa consecutiva. Basicamente ele traçou a seguinte linha:
ü
Mateus
para o ministério de Jesus
ü
João
para a paixão de Jesus
ü
Inseriu
Marcos e Lucas onde era apropriado (por exemplo: Sermão do Monte de Mt 5-7 e o
Sermão da Planície de Lc 6.17-49).
b.
Agostinho
de Hipona:
já na segunda metade do 4º e início do 5º séc. A.D., enfatizou que os
Evangelhos freqüentemente não indicam com precisão o local e a seqüência dos
eventos que relatam. Segundo ele, só se deve presumir local e continuidade
cronológica quando o texto indicar explicitamente. Outro destaque de Agostinho é que passagens
paralelas podem variar em vocabulário, mas transmitir a mesma idéia.
c.
João
Calvino (1509-64):
publicou em 1555 uma “Harmonia dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas” em
Latim. Ele procurou fazer um arranjo com
as passagens, tentando colocá-las em ordem.
II.
O Problema Sinótico:
A questão principal dos sinóticos é descobrir
qual foi o primeiro escrito e, conseqüentemente, quais são os outros que
dependeram desse primeiro para produzirem seu Evangelho. Mas até que ponto podemos saber se um evangelista
utilizou material de outro evangelista tem sido objeto de debate há muitos
séculos.Textos como Lucas 1.1-4 e Jo 21.25 sugerem a hipótese de que um autor
conhecia o trabalho de outro.
a.
A
Teoria da Prioridade de Marcos:
Essa é a teoria que goza de maior
aceitação entre os eruditos. Também
chamada de Teoria dos Dois Documentos, defende Marcos como o 1º escrito. Mateus e Lucas teriam copiado de Marcos em
vários pontos, porém não deixaram de usar material de uma outra fonte que
Marcos desconhecia. Essa seria a
explicação para as diversas palavras de Jesus comuns em Mateus e Lucas, mas que
não aparecem em Marcos. Com isso, surgiu
a hipótese da chamada “fonte Q”, que veremos a seguir.
Marcos
Mateus
Q Lucas
b.
A
Teoria Tradicional de Mateus:
Marcos é visto não como o primeiro, mas
como resumo de Mateus e Lucas teria usado os 2 para produzir seu
Evangelho. Tem gozado de muita
popularidade na Igreja desde Agostinho essa teoria.
Mateus
Marcos Lucas
Os
problemas quanto ao relacionamento literário entre os Evangelhos não é fácil de
ser resolvido e nenhuma das teorias fornece resposta a tudo. Talvez melhor
seria pensar que, pelo fato de cada evangelista estar já envolvido com uma
Igreja, utilizasse uma seletividade, que jamais deve ser confundida com
criatividade do autor. Há dois pontos
importantes a se pensar:
1.
Independência: cada evangelista usou o material mais
adequado ao seu propósito (seletividade) em escrever o Evangelho.
2.
Interdependência:
todos os evangelistas conheciam as tradições orais acerca de Jesus. Essas tradições que circulavam nas Igrejas
eram, presumivelmente, fiéis aos fatos.
Assim, talvez
não seja necessário pensar que os evangelistas usavam muito material
escrito. Talvez isso seja razoável para
explicar as diferenças nas palavras de Jesus em um ou outro Evangelho. Ainda assim, Marcos parece ser o mais
primitivo de todos por alguns fatos:
¨
A simplicidade da narrativa;
¨
Pela sua falta de preocupação com a perseguição;
¨
Por não ter 250 versículos que Mateus e Lucas
possuem em comum.
4. As fontes do Evangelho: O proto-evangelho e a fonte Q
O chamado “problema sinótico”, que já introduzimos acima,
tem relação com a origem desses Evangelhos. Há muito material comum aos três, mas também há considerável quantidade
de material peculiar apenas a dois dos três e até material peculiar a cada um
deles. Ao observar os sinóticos, notamos
o seguinte:
w
Algumas passagens concordam quase ad litteram – Mt 21.23-27 =
Mc 11.27-33 = Lc 20.1-8; Mt 24.4-8 = Mc 13.5-8 = Lc 21.8-11.
w
Mateus e Lucas têm muita coisa que está ausente
em Marcos.
w
Às vezes, a matéria é exclusiva, encontrando-se
em apenas um dos Evangelhos – Mt 1.1-2.23; Lc 1.1-2.52.
w
Outras vezes, há matérias comuns há dois deles,
chegando a quase uma concordância literal – Mt 6.25-34 = Lc 12.22-31.
w
Marcos, apesar de ser o mais breve, contém cerca
de 30 versículos que lhe são próprios, não encontrados em Mateus e Lucas –
exemplo: Mc 4.26-29.
Assim, diz-se que os sinóticos
contêm diferenças e semelhanças. Essa
notável combinação de concordâncias e divergências chama-se “concórdia discors”, ou seja,
concórdia discordante.
I.
Tentativas de Solução do
Problema Sinótico:
Desde os começos do século XIX
têm surgido tentativas para a solução do problema sinótico. Dentre elas, quatro merecem destaque:
A
hipótese do proto-evangelho:
Essa hipótese foi proposta por G.E. Lessing (1778) e J.C. Eichhorn, que
acreditavam na existência de um evangelho original, uma fonte escrita comum da
qual os três evangelistas sinóticos se serviram para a produção de seus
Evangelhos. Segundo o pensamento de Lessing, essa fonte seria um evangelho em
aramaico escrito por Mateus, conhecido como Evangelho dos Nazarenos. O nosso
Evangelho de Mateus, seria um resumo desse primeiro que teria se perdido.
Marcos e Lucas teriam derivado o seu material desse evangelho aramaico, feitos
de acordo com seus pontos de vista e com os propósitos que tinham em mente. A
base para as suposições de Lessing era uma declaração de Papias de que cada um
interpretava a Logia de
Mateus como podia.
A hipótese
diegésica ou dos fragmentos (diegeses - "relatos"):
Segundo
esta hipótese, produzida por Schleiermacher (1768-1834 d.C.) em 1817, os
sinóticos foram formados a partir de inúmeros fragmentos que foram registrados
pelos apóstolos e seus ouvintes. Desse modo, a matéria dos Evangelhos sinóticos
viria de um grande número de breves anotações (diegeses),
que apareceram bem cedo. Esses
fragmentos, contendo temas como milagres, parábolas, narrativas e discursos, logo
foram traduzidos para o grego e serviram de base para os evangelistas
sinóticos, que os coletaram e com eles formaram os seus evangelhos. Lc. 1:1-2
tem sido invocado como uma evidência disto.
Todavia, esta teoria não explica
a concordância na disposição da matéria.
A hipótese da tradição oral:
Foi
defendida primeiro em 1797 por J.G. Herder e mais tarde por J.K.L. Geisler, em
1818. Baseia-se na pressuposição de um proto-evangelho, não escrito, mas
pregado oralmente, que teria tomado
forma fixa bem cedo, por volta de 35-40 a.D. e poderia ser essa forma igual a
da pregação missionária dos apóstolos, conforme transmitida pelo Livros de
Atos. Foi aceita por muitos estudiosos protestantes como Westcott, Alford,
Godet, etc. Esta teoria está certa
quanto ao fato de a matéria dos Evangelhos foi transmitida oralmente por um
longo período, mas não explica satisfatoriamente as concordâncias, às vezes
literais, e a sucessão das perícopes em ordem idêntica.
A
hipótese das duas fontes:
A
teoria admite duas fontes para a origem literária dos Evangelhos sinóticos: uma
é o Evangelho de Marcos, que serviu de modelo para os outros dois (Mateus e
Lucas); e a outra, que continham as palavras do Senhor, chamada fonte Q. A
fonte Q é um pressuposto que originou-se após os estudiosos terem percebido que
50% dos textos de Mateus e Lucas concordam quase literalmente e que não estão
em Marcos. Com isso concluiu que Mateus e Lucas se basearam num texto grego
comum, a que chamou de fonte dos discursos, pois "consiste" em grande
parte dos discursos (ou ditos) de Jesus. Esse suposto texto é hoje chamado de
fonte Q por causa da palavra alemã para fonte - Quelle.